14 de maio de 2008

O conto (dele) do nada

Não era um dia para conversões, muito menos para morangos no jardim. Quando a chuva do pequi chega, o mais que se pode querer é sentir o olor do mato quente respingado. É uma chuva que se mede em pingos, não em milímetros. Adão contou trinta e sete sobre a calça khakis, as pernas esticadas e cruzadas no remoer da dor dos morangos que eram a ausência de Natine. As sombras se esticavam como suas pernas, puxadas pelos dedos amarelos que cegam nos fins de tarde do cerrado. Sombra de um tronco, sombra da caixa de morangos sobre a mesa de centro no centro de nada, na sem-temperatura de Brasília que, às cinco horas, dá lugar a outros calores, a outros frios, a saudades.
Esta é uma história sobre nada, sobre como nada aconteceu e sobre como o Nada pode pesar tanto sobre um homem.
O Rayuela merecia ter sido o palco dessa história não acontecida, ele que foi palco do que não deveria ter acontecido, palco do grande erro que foi errar com Natine.
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No Café, Adão teria pedido um porto para dois e ela retrucaria, talvez, que preferisse anis ou um chopp, o primeiro para demarcar seu gosto tão outro – Adão jamais pediria anis – o segundo para ir bem com o despojamento da legging de oncinha com camiseta preta, e o cair da tarde de domingo, inaugurando um ritual urbano com que se promete um beijo antes de chamar novamente o garçom. Isto, se seus olhos fizessem bem o seu papel de condutores dos gestos, enquanto boca e ouvidos seguem sua trilha sonora raramente relevante, praticamente incidental, porém talvez não com ela, para ela Adão quereria uma conversa intensa, de trocas rápidas de rumo, ritmada por observações sagazes sobre a viela, o jardim, a arte arremedada, as buzinas, coisas que aproximassem suas percepções do mundo em volta, que aproximassem seus copos, corpos e lá estaríam os dois do mesmo jeito, na iminência do beijo, se com arte também antes do segundo chopp.
O que fazia de Natine uma mulher incomum era a conjugação, nela só, de uma meia dúzia de lugares comuns de roda de homens, somados a dois ou três atributos que seria ridículo lembrar num ambiente desses. Os tais lugares comuns começavam pelo ser morena e ter olhos negros, passavam pelo seu metro e sessenta, e encerravam qualquer discussão ao chegar aos quadris, em movimento ou não. Que quadris!
Enquanto esperava Adão para sair do café, Natine folheava uma revista. Quanto charme no folhear de uma revista que era ou Nova ou Cosmopolitan, enfim, uma revista que ensina mulheres a dominar homens, e que, talvez, numa edição passada tenha ensinado aquela mulher a folhear tão perfeitamente aquela revista.
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Recostados ao tronco de uma árvore imensa - nem Adão nem Natine sabiam nomes de árvores, e achavam que o sonho de um dia escreverem um romance estava fadado ao fracasso por esta falha imperdoável. - o vento perfeito para o fim da tarde soprava, o mais de chuva não viria, no carinho do vento um consolo: os prazeres da infância sobrevivem à crueldade inevitável dos conflitos de que é feita a vida. Ventava e isso era bom. Mas Natine o acorda, mesmo distante.
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Adão tinha o hábito de quebrar o clima tenso com algum non-sense ou alguma frase que só os dois entendessem:
- Ipês, Natine.
- Hã?
- A gente poderia morar num tronco de Ipê. Que tal o Ipê amarelo? Só dá em setembro, por isso é o símbolo do Brasil: setembro, verde e amarelo. Acho que deviam dizer que é símbolo do Brasil também porque floresce na seca mais brava. Aquela árvore que a gente ficou recostado na L2, imensa, uma explosão em roxo, é o Ipê roxo. Essa dá entre junho e julho, junto com o Ipê vermelho, acho - se é que tem Ipê vermelho, não lembro bem agora, ouvi na TV essa estória toda. Aí, em agosto e setembro, vem o amarelo. Depois, ainda antes da chuva, vem o Ipê branco. Tem Ipê branco, também, e esse dá duas floradas. Pronto: já podemos escrever um romance.
- ...
- Um conto?
- Eu preciso pensar, Adão. Disse sorrindo.
- Pense, meu amor. Depois me diga. Me diga antes da segunda florada do Ipê branco.
- Depois a gente fala sobre isso. Come os morangos.
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Tudo isto se ele tivesse dito alguma coisa, mas não disse nada, não ligou. Se retirou como quem se rende, e ele se rendeu. Adão não perseverava, não insistia. Ele era de uma beleza que prenunciava ruína, e assim foi. Seus desejos eram satisfeitos com uma facilidade que o levara a achar todo o resto muito trabalhoso. Vivia para seus desejos imediatos, que os sucessos a que podia aceder, por talento e esforço de juventude, agora pareciam dar muito trabalho em comparação ao essencial - o essencial se resumia a receber doses insultuosas para os demais mortais de carinho das beldades do lugar. E morangos.
Ele continuou lá com seus dentes, seu nariz, seguro e correto, intocado e inatacável, em resumo: miseravelmente sem ela e sem sequer uma história digna de menção para envolver aquela mulher tão digna de menção.
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Da janela do seu quarto, Adão observa quase sempre, não hoje, o azul imaculado de nuvens que pinta a seca, no céu de meio-dia da Brasília de um dia como este. Mas não vê como deitar sobre ele os olhos daquela mulher que se perdeu num domingo, num Café, capuccino e pão de queijo, a vida inteira que poderia ter sido e que não foi. Que não foi adiante. Que não foi além... de não ter sido Natine.
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Escrito por: Umami Brasilis

7 comentários:

Venus in Furs disse...

Que lindo!

Poderia ter sido, mas não foi... E quem determina o que pode ainda ser?

A vida é curta demais pra ficarmos especulando e não corrermos atrás do que a gente deseja: felicidade.

Te amo, amora.

Renatinha disse...

Amo-te também, menine! Lindo mesmo...é de uma pessoa das poucas que conseguem me comover só por existirem! =)

Paranóia Ululante disse...

MUITO LINDO isso. Digo logo que o apelido Natine, fui eu quem coloquei. Mas ficou belo no conto. Parabéns ao autor!

Unknown disse...

Não consigo ver beleza nisso, acho triste e um tanto quanto deprimente.

E concordo que o crédito pelo "natine" seja da tassine. (desculpe a intimidade)

Renatinha disse...

Frustrante seria a palavra, não, Marcelo? Deve ser mesmo deprimente não concretizar tamanha nostalgia do que não houve...E concordo com as meninas de que é belo. Belo o escrito, o poético de se ver beleza na aparente trivialidade. E tal sutileza denuncia, na verdade, a beleza de quem a criou.

Renatinha disse...

Ah, e bom te ter aqui...num conto dos outros de blog! =) =*

Anônimo disse...

Mto bom, a foto lembrou chuva de piqui tbm. hehe O que seria um rayuela? Pbs pelo blog. Abs. Carlão